01 maio, 2006

Ventos de mudança

in A FOLHA DOS VALENTES - Nº 350 > Abril 2006
Rubrica: Caderno Diário
> Texto: Ana Ferreira


Querido Diário,
Estamos a chegar ao fim do tempo da Quaresma. Nesta altura, algumas pessoas fazem determinados sacrifícios e, entre outras coisas, há quem deixe de comer carne como forma de sacrifício.

No entanto, estamos a atravessar uma época em que toda a gente fala da “famosa” gripe das aves que já afecta muitos países, assim sendo, não tardará muito até que aumente o número de pessoas que deixam de comer carne, principalmente branca… e não será apenas no tempo da Quaresma. Quem sabe até se a população não se tornará ainda mais vegetariana?

Muitos são vegetarianos devido a motivos de saúde, outros por motivos de sensibilidade pelo facto de alguns animais serem mortos para fins de consumo, e ainda há quem seja vegetariano por questões culturais.

Eu não sou vegetariana, mas não coloco essa ideia de parte, pois, apesar de gostar de carne e não só, não sei o que o futuro me reserva e algum dia poderei ter de optar por sê-lo, pelas mais variadas razões.

Eu pessoalmente admiro aqueles que são vegetarianos, pois acredito que é muito difícil e se o mesmo tiver de acontecer comigo, penso que precisarei de ajuda. Dentro do grupo de pessoas vegetarianas existem aquelas que apenas deixam de comer carne, mas continuam a consumir outros alimentos como ovos, queijo, leite, etc. Mas existem também aquelas que optam por algo mais radical e, para além de não comerem carne, também não comem os derivados.

Não tenho certezas em relação a este assunto mas, na minha opinião, para se tornar totalmente vegetariano é necessário fazê-lo aos poucos, ou seja, deixar de comer alguns alimentos gradualmente para que a mudança não seja repentina e que o hábito torne tudo mais simples e menos difícil. Este é mais um exemplo de que para qualquer mudança há sempre um período de adaptação, no entanto, este período pode ser mais fácil ou menos fácil, mais longo ou nem tanto, dependendo da pessoa e da situação.

Agora fico por aqui… quem sabe se para a próxima não serei quase vegetariana?

Uma questão de liberdade de expressão

in A FOLHA DOS VALENTES - Nº 350 > Abril 2006
Rubrica: Outro ângulo
> Texto: Maria Leonor

Há uns anos atrás, quando fazia uma viagem de autocarro, ouvi uma mulher comentar com outra que preferia a hipocrisia do Sul à frontalidade do Norte.
Ainda que eu não pense (nem nunca tenha pensado) que todas as pessoas do Sul sejam hipócritas nem que todas as pessoas do Norte sejam frontais, achei muito curiosa aquela afirmação e nunca a esqueci. Creio que, na altura, o que mais me surpreendeu foi alguém ter uma opinião tão distinta da minha, uma vez que para nós é sempre “difícil” confrontarmo-nos com realidades diferentes, sobretudo quando se aplicam àquelas “verdades” que achamos inabaláveis. Na verdade, toda a minha vida fui demasiado frontal e sempre apreciei isso nas pessoas com quem lidava. Ainda hoje, nada me magoa mais do que saber que uma pessoa que considere amiga possa falar mal de mim a terceiros sem primeiro me confrontar com o que diz a meu respeito. Sei inclusivamente que já deixei de ter amigos por ser demasiado frontal, mas sempre encarei isso como um risco que corremos, já que, como todos sabemos, ter um amigo ou fazer uma amizade pressupõe sempre uma escolha activa e uma partilha de interesses entre ambos. Contudo, com o tempo fui-me apercebendo dos diferentes contornos que a palavra frontalidade pode ter na cabeça de uma pessoa mais sensível.
É inegável que vivemos num país em que se fala excessivamente mal dos outros e em que os reality shows e as coscuvilhices são alguns dos passatempos mais populares e favoritos de grande parte dos portugueses. A liberdade de expressão que hoje temos permite--nos extravasar e dizer tudo o que pensamos, às vezes até de forma rude e insensível, parecendo-me ser esta uma consequência incontornável da repressão que um dia nos caracterizou e que nos fez viver durante tempo de mais num mundinho demasiado pequeno, apenas com referências locais muito redutoras.
Herdámos o que nos foi transmitido e não tivemos culpa de vivermos obcecados com a rotina, o pormenor e a maledicência, mas parece-me que esta nova geração de jovens deve quebrar essa barreira com o passado e alargar os seus horizontes para além das quatro paredes dos seus quartos. Deve informar-se, envolver-se em actividades extra-escolares e construir uma vida própria cheia de referências de qualidade e de valores. Deve sobretudo adoptar a regra de ouro, “fazer aos outros o que gostariam que lhes fizessem a eles”, e acima de tudo tentar ser felizes e fiéis a eles mesmos. Essa seria a maior conquista de uma liberdade adquirida há apenas umas poucas dezenas de anos e assinalada agora durante o mês de Abril.
Num mundo cheio de contrastes e de opiniões distintas, é a liberdade que nos dá a opção de seguir o caminho com o qual nos identificamos mais, é a liberdade que nos permite ser frontais, mas é o bom senso que deve prevalecer sempre nas nossas opções de vida, até porque ser frontal é “dizer a coisa certa no momento certo”. Se, na prática, formos frontais desta forma, estou convicta que ninguém preferirá a hipocrisia à frontalidade e seremos, com certeza, muito mais felizes no nosso dia-a-dia.

Estar à altura da fé...

in A FOLHA DOS VALENTES - Nº 350 > Abril 2006
Rubrica: Pedras Vivas
> Texto: António Augusto


Na pujança da Primavera, o encanto da Páscoa, a nossa (nossa, dos cristãos) festa! Quando penso em Páscoa, penso em “compasso”, como dizemos cá pelo Norte, ou em “Visita Pascal”, como se diz noutros pontos do país. E compasso, para mim, é alegria e festa; é anúncio da mais maravilhosa de todas as notícias: A MORTE FOI VENCIDA, Cristo derrotou-a!

E lembro-me de um compasso que fiz, que tive que interromper cerca de hora e meia para fazer um funeral. Avisados, os da comitiva queriam mudar de opa, porque achavam que aquelas vestes festivas destoariam, o da cruz queria que lhe trouxessem outra não enfeitada, como se naquele pudéssemos esquecer, nem que fosse por breves instantes, que o Senhor que anunciávamos era o Cristo da Páscoa gloriosa, o Senhor da vida. O da campainha queria deixar de a tocar lá nos arredores da casa. E até os miúdos, que, alegremente, nos acompanhavam, foram admoestados para que não fizessem barulho. O sineiro, esse, não entendia como podia tocar festivamente, em hora de finados, e o sacristão queria a todo o custo que o paramento fosse roxo.

Pedi que chamassem alguém da família, para combinarmos as coisas. Veio uma filha, que era a animadora do grupo de jovens daquela paróquia. Apresentei-lhe as minhas condolências e com toda a precaução fui-lhe lembrando que a liturgia da Páscoa é tão solene que se sobrepõe a tudo e que por isso, mesmo sendo um funeral, naquele dia tudo seria diferente. PORQUE JESUS RESSUSCITOU.

– Entendo, perfeitamente, Senhor Padre. Faça o que tem a fazer e como deve. Quanto a mim e aos meus familiares, não se incomode, saberemos estar à altura da fé que professamos.

Gostei do que ouvi. Às vezes é tão complicado explicar estas coisas. Na hora combinada lá fomos. Pedi ao da campainha que não deixasse de tocar, pois se havia sítio onde o anúncio da ressurreição tinha que ser dado, naquele dia e naquela paróquia, era ali, naquela casa. Os da comitiva lá foram festivamente vestidos, de opa branca, o paramento foi branco e o sino tocava festivamente. Chegámos à casa do defunto. No caminho que ia do portão até à casa da família enlutada, havia flores e rosmaninho no chão, como em todos as outras casas, pelas escadas acima estavam os elementos do grupo de jovens da paróquia. Quando nos aproximámos, pegaram nas suas guitarras e flautas e começaram a cantar cânticos ao Senhor da Glória, que venceu a morte. Na sala onde estava o caixão não havia panos pretos, mas de cetim branco, com um crucifixo, também enfeitado, ladeado por duas velas acesas. Tão simples e tão lindo!
Apesar da dor que a despedida de um familiar ou de um amigo sempre provoca, não havia gritos histéri-cos, como há em tantos funerais, mas cânticos, orações e súplicas. E foi assim todo o caminho até à Igreja, e depois até ao cemitério. E na hora da descida à sepultura aquela jovem pediu-me para dizer uma palavrinha. Agradeceu a forma como a família e os seus amigos tinham sabido acreditar que há MAIS VIDA DEPOIS DA MORTE e dado público testemunho da fé que todos tínhamos na Ressurreição de Jesus, garantia da nossa própria ressurreição.
E de olhos no céu, disse, com a firmeza possível em tal circunstância:
– Obrigado, ó Deus, pelo meu querido Pai.
E mais não disse. Deixou cair uma lágrima silenciosa, deitou sobre o caixão do Pai o ramo de flores brancas que carinhosamente trazia nas mãos e começou de novo a cantar:
– Ó morte, sempre vencedora, onde está agora, a tua vitória?
E todos cantámos:
– Ressuscitou! Ressuscitou! Ressuscitou! Aleluia.

Não gosto de funerais, mas daquele gostei: foi um funeral cristão!

Livro de felicitações

in A FOLHA DOS VALENTES - Nº 350 > Abril 2006
Rubrica: Nada de Novo
> Texto: David Vieira

A partir de 1 de Janeiro deste ano, o Livro de Reclamações é obrigatório em todas as actividades de prestação de serviços de atendimento público.
O Decreto-Lei n.º 156/2005 de 15 de Setembro instituiu a sua obrigatoriedade e disponibilização afirmando que “o Livro de Reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu”. A criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores.
A Escola onde trabalho, como estabelecimento de ensino particular e cooperativo, também tem a obrigatoriedade de dispor um livro desta categoria.
Há dias alguém me perguntou se o livro já tinha sido estreado. Respondi afirmativamente:
– Sim! E fui eu o primeiro a escrever.
– E qual foi a reclamação?
– Não escrevi nenhuma reclamação, mas sim uma felicitação. Dei os parabéns à Escola pelo facto de estar a cumprir a lei, disponibilizando um livro de queixa.
– Isso não vale. O livro é para registar reclamações e não felicitações…
– Tens razão. Mas ao felicitar assim a Escola, reclamei positivamente. Queixei-me da falta de um livro de felicitações.
– Para isso há remédio. Arranje um livro de ouro e coloque-o ao lado do outro. Cada um poderá reclamar ou felicitar…
Aproveitei a ideia e assim, na minha escola, ao lado do aviso obrigatório, existe um outro: “Este estabelecimento também dispõe de Livro de Felicitações”.
Isto é uma questão de educação.
Promove-se o espírito crítico, a queixa, a reclamação, a defesa dos próprios direitos. O exercício da cidadania não devia, porém, esquecer o outro aspecto: a defesa dos próprios deveres, o elogio, a gratidão, os agradecimentos, felicitações ou congratulações.
Eu acho que primeiro deveríamos aprender a felicitar e só depois a reclamar. Os nossos olhos deveriam ser mais céleres em notar o que de bom e de positivo se passa à nossa volta e só depois assinalar o resto.
Não sei qual seria a opinião de Jesus Cristo sobre este assunto. Mas tenho a impressão de que Ele repetiria o que observou junto do tesouro do Templo, ao ver uma viúva pobre deitar duas insignificantes moedas. Só Ele soube congratular-se com pequenas coisas e registá-las no livro de felicitações.

Alma de pedra

in A FOLHA DOS VALENTES - Nº 350 > Abril 2006
Rubrica: Sol da Lua
> Texto: Jorge Robalinho

Sou pedreiro do meu ser
Construo a minha alma
Amontoando sentimentos
Erguendo paredes de calma

Faço muros de palavras
Letra sobre letra encosto
Minha vida se constrói
Com as pedras que mais gosto

Todas elas seleccionadas
Uma a uma são escolhidas
As que tenho são mais belas
Todas são minhas amigas

Fiz uma lua de pedra
Pendurei-a lá no ar
Para a minha linda princesa
Ficar comigo no olhar

Essa princesa é pedra
De todas a mais preciosa
Com coração de brilhantes
E de alma carinhosa

© art&ofício